2013/09/19

A gata do medalhão

Quando olho para trás, há momentos que aparecem primeiro no flash back. O primeiro é como ao chegar a casa e ser confrontada com a intimidadora Xica, que tinha o dobro do tamanho dela, a valente Tisna rosnava e conquistava, passo a passo o seu espaço lá em casa, como quem diz “assanha-te aí à vontade, eu sou da rua pá, venho de uma ninhada de 8!”. E assim era. Para a idade era uma micro-gata. Tinha que lutar com os irmãos pela pouca comida, de tal maneira que nem devia ter tempo para limpar os bigodes. Após alguns dias conseguimos finalmente limpar-lhe o focinho até ficar branco. A micro gata entrava dentro de uma tigela de ração e ao mesmo tempo que comia, rosnava, como quem diz “nem penses em tirar-me isto”. Eventualmente habitou-se que a comida estava sempre à sua disposição e não havia necessidade de competir por comida. Ficou-lhe no entanto o trauma, pois muito antes da ração acabar começava a miar de roda da gente (logo ela que sempre foi tão silenciosa) e a fazer viagens dona - gamela da comida – dona até que nós percebessemos.

Outro foi quando a levámos para ser esterilizada, voltamos com uns comprimidos, creio, anti-inflamatorios. No primeiro dia lá tivemos que lhe abrir a boca e empurrar o comprimido. No segundo dia abrimos-lhe a boca mas ela não ofereceu resistência (e parecia incredula por a estarmos a forçar). Ao terceiro dia, pareceu-me que ela veio ter connosco quando ouviu a caixa dos comprimidos abanar. Achámos estranho, mas coloquei o comprimido na mão e mostrei-lhe. Tomou o comprimido da mão como se fosse um petisco. E daí para a frente bastava-nos sacudir a caixa para ela vir, toda lampeira. Na consulta da revisão, lá a veterinária nos confirmou que o paladar dos comprimidos era apelativo para eles. Já estávamos a pensar que tinhamos uma gata super dotada.

Era a gatinha perfeita. Gatinha de colo. Queria comer, dormir e festinhas. Chamávamos-lhe “cu gordo” – ela não saltava para cima do sofá; pendurava-se e içava o rabo, “mafiosi” – reminescência dos tempos de cria de rua e “fuinha” – era perita em escapulir-se para onde queria ou esconder-se (no quarto, sala ou – imaginem – casa de banho). Foram poucas as asneiras verdadeiras que fez.

Era a gata mais meiga que já conheci. Queria festas e queria já – era completamente indeferente às visitas que não gostavam de gatos; se estava no sofá era alguém em potencial para lhe dar festas. Só de imaginar que as ia receber, começava a ronronar alto de satisfação. O seu pelo era o mais fofo lá de casa.

Há um ano e meio apereceu-lhe um tumor no lombo, onde apanhou as vacinas. Cancro de pele disse o vet da altura – cirurgia já pois não tem ramificações. Voltou. Mudámos de vet – cancro provocado pelos adjuvantes então utilizados nas vacinas. Não devia sequer ter operado – a quantidade de derme, epiderme e massa muscular que era necessário remover era demasiado grande para ser viável (para um tumor de 2 cm). A cirurgia apenas tornou o então já agressivo tumor, ainda mais agressivo. Aguentámos enquanto pudemos, enquanto vimos que ela tinha qualidade de vida, enquanto não ganhámos coragem por a levar de volta ao veterinário, desta vez  pela derradeira vez.

Foi ontem. Foi a coisa mais tranquila e pacifica que já vi. Como o apagar de uma vela. Sentimos todas saudades dela, ainda agora ela se foi. A morte é sempre estupida. O cancro é sempre injusto e cobarde.

A minha Maria mostrou-nos uma maturidade que não estávamos à espera. Explicámos-lhe tudo. “Vou sentir muita saudade da Tisninha.”

 

Também eu filha, também eu.