2006/02/03

Languidez dos gestos II

Desde muito cedo que havia algo de que gostava muito mais do que andar a cabriolar com amigos, ver televisão, ou qualquer outra actividade predilecta das crianças daquele tempo.

No meio de uma família com uma mãe que corria (corre ainda) literalmente *hoje quando me repreendem a passada larga, conto sempre como aos ¾ anos tinha de correr ao lado da minha mãe para lhe conseguir acompanhar o passo* para alimentar, vestir, arrumar uma casa de gente e um pai que acima de tudo é ponderado, minucioso e perfeccionista... estava eu. Capaz de levar a martelar o juízo da minha mãe com cantorias, lengalengas, imitações de instrumentos musicais... era contudo capaz de levar horas junto do meu pai em silencio absoluto, respondendo apenas a perguntas suas, fazendo apenas as perguntas fundamentais para me sentir esclarecida e cumprindo as suas ordens.

Eu era o que ele chamava de “o meu servente” e fazia com ele “mandadinhos”. Da carpintaria à electricidade o meu pai era um híbrido entre o Tim das “Obras em casa” (lembram-se da série?) e Filipa Vacondeus . Levávamos horas procurando no meio de centenas de parafusos velhos que guardava numa caixa o parafuso certo para apertar aquela dobradiça da janela. “Vê lá aí filha, olha tem de ter a cabeça assim, em cruz e tem de ter este comprimento ou maior. Se for maior cortamos com o alicate” A minha ferramenta predilecta era a torquês velhinha que nos meus primórdios chamava de português- era portanto fervorosa adepta do produto nacional.

Todas estas tarefas eram executadas com uma calma e ponderação inimaginável. E eu ficava hipnotizada, seguindo todos os seus gestos, raciocínios, tentativas. Era como se uma força invisível me imobilizasse a cabeça, segurando na nuca, provocando-me arrepios. Ficava assim num torpor prazenteiro.

Aprendi assim a apreciar estes gestos lentos nas mais variadas pessoas (desde o homem do talho e a forma certeira com maneja o cutelo, ao trabalho dos artesãos...) e tudo o que possa comportar este tipo de meticulosidade e meditação de gestos. Este prazer tem-me acompanhado toda a minha vida. Hoje é raro apanhar-me assim presa aos gestos de alguém, fruto do ritmo que levamos talvez. Mas quando consigo tal coisa é como se fosse criança outra vez a seguir os gestos do meu pai.

Sem comentários: